Quando chegou a Paris, aos 17 anos, a inglesa Dolly Wilde foi morar com outras quatro mulheres num pequeno apartamento em Montparnasse. Naquele ano de 1914, início da Primeira Guerra Mundial, a população civil já se mobilizava. As mulheres, não podendo servir no Exército, trabalhavam como voluntárias em hospitais e fábricas.
Curiosamente a frota de motoristas de ambulância reunia muitas lésbicas e, entre elas, as cinco garotas de Montparnasse (como também a escritora Gertrude Stein e sua "mulher", Alice B. Toklas).
Da convivência íntima, nasceu a paixão. Dolly começou a namorar sua colega de apartamento, Betty Carstairs (mais conhecida como Joe), uma rica herdeira da Standard Oil que adorava se vestir como homem e tinha os braços musculosos tatuados. Juntas, Joe e Dolly passavam as noites de folga observando, pelo teto de vidro do apartamento, os aviões alemães que bombardeavam Paris. Um espetáculo lindo, não fosse trágico.
Para esquecer as cenas horripilantes que testemunhavam em serviço, as cinco garotas de Montparnasse saiam juntas para beber madrugada adentro. Percebendo a efemeridade da existência em tempos de guerra e sedenta por viver a vida até a última gota, Dolly tomou gosto pela bebida e pela boemia.
Quando a guerra terminou, despiu o uniforme azul- marinho, colocou um vestido e incorporou seu melhor papel: o de sobrinha de Oscar Wilde, cuja semelhança com o tio assombrava a todos.
Dolly vai à festa
Era impossível não perceber a incrível semelhança entre Dolly e seu falecido tio, Oscar Wilde. O rosto oval, as mãos longas, os cabelos escuros, o formato dos olhos: tudo lembrava o escritor.
H. G. Wells ficou encantado por encontrar uma versão feminina de Wilde. Outros inventavam que ela era o próprio fantasma do tio. Mas as semelhanças não se resumiam à aparência. Mercedes de Acosta, amante de Marlene Dietrich, achava que Dolly lembrava Oscar em suas tiradas espirituosas e em sua vivacidade. A colunista da revista "New Yorker" Janet Flanner (também lésbica) escreveu que Dolly era uma personagem saída de um livro.
Muitas mulheres e homens se apaixonaram por Dolly ao ver em seu rosto Oscar Wilde. Apesar de se divertir com a semelhança e até explorá-la, a sombra do tio lhe fez mal. No esforço de viver como personagem, buscando a intensidade e a fantasia que só existem nos livros, Dolly tomou gosto pelas drogas.
Ela se comportava de modo excêntrico e inusitado. Dizem que aplicava heroína na própria coxa, debaixo da mesa, durante jantares formais, sem que ninguém percebesse. Depois guardava a seringa na bolsa e continuava conversando como se nada tivesse acontecido.
Quando a Segunda Guerra estourou e os loucos anos terminaram, Dolly estava viciada, sem dinheiro e com um câncer no seio em estágio avançado. Morreu em 1941 de overdose -não se sabe se intencional ou acidental. A personagem encerrou sua ficção com uma pitada de mistério.
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Cantora, compositora, colunista GLS e proto-escritora. Lésbica e feminista. Atualmente assina a coluna GLS da Revista da Folha no jornal Folha de S.Paulo e a coluna "Vange Leonel" no Mix Brasil.