Afrodite na Cerveja
[por Vange Leonel, parte do livro inédito "Novos Pergaminhos de Bilitis"]
Afrodite nasceu para mim do colarinho de um copo de cerveja. Da espuma espessa e amarga ela surgiu e se derramou dentro de mim. Através do vidro verde de um casco curvo vi seu corpo nu, distorcido, quadris ampliados, minimizados seios, olhos embaçados e pés flutuantes.
Seguindo o fluxo das bolhas que espocavam, ela mergulhou em minha garganta, escorreu pelo esôfago e foi se alojar nas vísceras. E dali para o baixo ventre, perto das partes sensíveis. Lá Afrodite se instalou e passou a me mandar sinais: voe, mergulhe, cante, fale, olhe para ela.
A cada gole de cerveja, mais obedecia. Ela induzia e eu voava, mergulhava, cantava, falava e olhava para ela. Como um turbilhão de ondas que me cobrissem num mar revolto, eu pedi mais uma, duas, três, infinitas cervejas. Nunca imaginei que Afrodite me faria afogar tão alegremente.
A pop star Madonna, quase sempre heterossexual, já disse ter tido amantes lésbicas por diversão. Ela então é bissexual. Ou não? Qual a verdade? Qual a demarcação entre a heterossexualidade intermitente e a bissexualidade sazonal? Quando uma hétero habitual se envolve emocional e fisicamente com outra mulher... ela é bissexual?
Conheço mulheres hétero geniais que têm sonhos recorrentes e excitantes em que transam com moças interessantes e querem mais. Seriam elas bissexuais? Talvez inconscientes? Ou apenas bissexuais dormentes?
Há de tudo nesse mundo e um pouco mais. Existem lésbicas que se fazem bi para não soarem radicais e garotas bi que se dizem lésbicas para não complicar demais. E os e-mails pessoais de leitoras perdidas que me escrevem e pedem sem sacanagem que eu resolva dúvidas ancestrais: seriam elas hétero, lésbicas ou bissexuais?
O fato é que há mais orientações do que essas três "normais". Há mais nuances, lances e sinais trocados do que estamos acostumados. O enlevo, o beijo e o sexo são fluidos, desconexos e dúbios. Quem hoje é bi amanhã pode ser hexa ou tri. Triste é não seguir o fluxo do gosto e do desejo. Haja molejo!
© Folha de S.Paulo
Cantora, compositora, colunista GLS e proto-escritora. Lésbica e feminista. Atualmente assina a coluna GLS da Revista da Folha no jornal Folha de S.Paulo e a coluna "Vange Leonel" no Mix Brasil.